Aos 82 anos mais magro,
o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, presidente da República por dois
mandatos consecutivos (1995-1999 e 1999-2003) e presidente de honra do PSDB,
pensa no futuro enquanto admira a privilegiada vista de São Paulo a partir dos
janelões de sua ampla sala na Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso
(iFHC), na Rua Formosa, em frente à Praça Ramos e cercada por ícones da
metrópole, como o Viaduto do Chá, o prédio da antiga Light e o imponente Teatro
Municipal.
“A distinção entre
passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”,
escreveu Albert Einstein. Frase da entrevista de 1h30 que FHC concedeu à FORBES
Brasil.
“Tenho saudade de quando isso aqui era mais
vibrante, um local onde a vida intelectual pulsava com a Faculdade de
Filosofia, a Biblioteca Municipal, os cafés, a Livraria Francesa e o Clube dos
Artistas. Isso aqui era a minha vida na São Paulo dos anos 40 e 50”, conta o
político carioca.
Hoje, com a agenda cheia
de viagens, compromissos, jantares e encontros como o The Elders – grupo
independente criado em 2007 por Nelson Mandela e composto por ex-líderes
globais, com o intuito de discutir a paz e os direitos humanos. Ele, Kofi
Annan, Jimmy Carter, Desmond Tutu, Ernesto Zedillo, fazem parte do dream team
que se encontrará em alguns meses em Moscou, na Rússia.
Imposição dos filhos e
netos. “Agora deram para me proibir de dirigir, mas eu continuo dirigindo um
Honda Fit pequenino”, conta, entre risos. FHC lucido e rei da razão, “pai do
Plano Real” falou sobre os desafios que o próximo governante do país enfrentará
a partir de 2015, “seja ele quem for”, e criticou o PT por ser marqueteiro
demais. “Está faltando sinceridade”, afirmou. O presidente Lula teve seus
méritos, mas “seu maior erro é pensar que ele começou a história do Brasil”. “A
inabilidade como comunicadora agravou o problema do país. A origem está no
governo “que pensa deter a mágica do crescimento” e na sua estratégia de abrir
o crédito público enormemente. O governo está agindo como “barata tonta” ao
tentar conter a alta da inflação. O Congresso “perdeu muito a sua centralidade,
tornando-se uma casa de despacho de interesses.”
FHC, retornar à política
nos próximos anos? “Só se eu fosse insensato”, brincou. A Arte da Política, seu
livro que se encontra em sua sétima edição e contabiliza mais de 100 mil
exemplares vendidos, trabalha agora em um material que não pretende publicar em
vida. “Nem poderia. Lá eu falo mal de muitos amigos”, revela em tom
bem-humorado.
FHC registrou por meio
de gravações de áudio a sua rotina. Um hábito noturno entre o governante e seu
gravador. Momentos importantes da história e muitos relatos de bastidores
ficaram entre quatro paredes e, hoje, encontram-se armazenados na internet. “O
conteúdo que tenho gravado deve dar em torno de umas 20 mil páginas”, revela.
Sua vontade é deixar o conteúdo pronto para “quem quiser publicá-lo depois que
eu me for.” “Se não queres que ninguém saiba, não o faças”, diz o provérbio
chinês.
“Eu não sou de abusar
muito de comida nem de bebida, faço minha ginástica e levo a vida normal. Andei
tempos atrás chateado com problemas de diverticulite e, talvez por isso, tenha
feito um pouco de dieta. Faço musculação. Antigamente eu fazia natação. Agora é
mais musculação, mais do que qualquer coisa. Faço com personal trainer. Tenho
82 anos, tenho que me cuidar, cuidar do físico.”
Como enxerga o seu
futuro: “Primeiro é uma surpresa eu ter vivido tanto tempo e ter chegado a esta
idade saudável e com energia. Eu trabalho como sempre, viajo muito, escrevo
muito, falo muito, é uma coisa positiva. Quando eu nasci (em 1931), a esperança
de vida não era para tão longe. Então sou privilegiado. Por outro lado, para
quem viveu tanto tempo e viu as coisas mudarem tanto, é preciso acreditar que a
vida pode melhorar sempre. Às vezes pioram. Há momentos de dificuldade e não se
deve perder a esperança. Eu nasci em um Brasil que não se compara com o de
hoje. Era um Brasil sem perspectivas para uma boa parte da população, que não
se integrava ao mundo, com um número gigantesco de analfabetos e metade da
população que não usava calçado. No Rio havia muita gente com tamancos por
conta dos portugueses. Agora usamos Havaianas. Há certo progresso (risos). É
mais barato também. O Brasil mudou enormemente. Depois da Segunda Grande
Guerra, vários surtos de renovação ocorreram. Foi quando o Brasil passou a se
industrializar para valer, viveu a migração rural-urbana. A população se
multiplicou por quatro. Foi uma transformação violenta e rápida. O mundo todo
mudou. Mas, comparativamente, ganhamos algumas posições e conseguimos avançar.
É uma sensação que dá esperança. Por outro lado, como já vivi muito tempo,
também sei que há momentos de pioras e isso depende de fatores globais,
nacionais e, até certo ponto, de liderança. Eu passei pelo Getúlio ditador,
pelo Getúlio democrata, pela Constituição de 46, pelo Golpe de 64, pelas
Diretas Já, pela Nova República. Enfim, vários momentos. Nunca houve, que eu me
recorde, um momento de tanta liberdade como agora no Brasil. Protesto faz parte
da liberdade. E também porque a sociedade sempre recoloca problemas. Nós
melhoramos muito, mas quando há melhorias, depois se quer mais. Os últimos
protestos que estamos assistindo são isso. As pessoas querem qualidade, padrão
Fifa, e questionam a razão para se gastar tanto dinheiro com a Copa quando não
se tem saúde, escola, segurança. Os problemas não vão parar, nunca param. Eles
se deslocam de patamar, principalmente depois da estabilização da economia, do
aumento do salário mínimo e de outras melhorias que vieram com isso tudo. Eu
não posso ser contra a Copa, primeiro porque o Brasil gosta de futebol. Segundo
porque é uma oportunidade para o país. Eu acho que houve um pouco de descuido
em entender que isso aqui é um país continental, e fazer a Copa em 12 cidades
implica uma logística complicada. Talvez não precisássemos dessa complicação.
Daí o elefante branco, pois vão fazer estádios em regiões onde você não tem
utilidade para os estádios. Houve uma estratégia de Brasil grande, um exagero. Eu
tentei fazer a Copa. Nós pedimos quando fui presidente. Fui lá com o Pelé, mas
perdemos a competição. O Brasil, na época, não tinha toda essa atratividade. Portanto,
eu não posso ser contra. Tinha, talvez, que calcular melhor. Do jeito que as
coisas andam complicadas em termos de transporte, eu acho que vou ver é pela
televisão.”
“Os mercados, sobretudo
os financeiros, sempre exageram. Nunca foi tão bom e nem é tão mau. A “The
Economist” simbolizou isso com o Cristo levantando voo e, depois, com o Cristo
quebrado. A verdade é que o país nunca levantou tanto voo nem está tão
quebrado. Tudo foi muito exagerado. É da lógica dos mercados. Dito isso, há
problemas. A dívida interna cresceu muito fortemente, os gastos fiscais estão
crescendo assustadoramente e a balança comercial já não responde como no
passado. Compramos mais do que vendemos. A balança total de contas é de US$ 80
bilhões negativos. Há sinais preocupantes. Daí essa ideia de que pode haver um
downgrade nas agências de risco e de investimentos. O problema é que precisa
ter um pouco de equilíbrio nas coisas. O governo ficou com a sensação de que
ele tem a mágica do crescimento nas mãos, de que ele pode fazer o crescimento
sozinho, que é só dar mais crédito público e levar o tesouro a financiar o
BNDES. Este, por sua vez, financia empresas com imensa transferência de renda.
Vivemos um momento no qual os mercados percebem que a política oficial está frouxa.”
“Há certa
incompatibilidade entre a realidade e o discurso. O discurso é sempre de
otimismo exagerado. Você liga a televisão, vê os jornais e escuta no rádio o
Brasil oficial, o Brasil maravilha. É muita publicidade, muito recurso, tudo
bem feito. E a vida não é tão boa assim. Não é que ela seja ruim, mas é um
choque, uma ducha de água fria. Quando o ministro da Fazenda fala, você pensa:
“Meu Deus do céu, este país não tem problemas”. E as pessoas sabem que não é
verdade. Falta uma linguagem mais sincera.
“Eu não sei se a
questão é mudar o ministro, eu acho que é mais do que isso. É mudar o estilo de
governo, o modo de governar. Não quero fazer críticas que possam parecer
fáceis, mas a máquina pública brasileira está muito pouco eficiente. A
governança não está boa. Não é o governo, é a estrutura do Estado. Nós temos 39
ministérios e isso não faz sentido. É muito. Não creio que a presidente tenha
capacidade física de se encontrar com os ministros. Há um desarranjo e esse
desarranjo leva o país à sensação de que está na hora de mudar. Não se sabe
também mudar para quê. Nesse momento, o próprio governo vai querer se fantasiar
de mudancista e a oposição fará o mesmo.”
“O que geralmente produz
uma situação inflacionária é o desequilíbrio muito grave entre a receita e a
despesa. É o que está acontecendo. Aí você aumenta o imposto e,
consequentemente, a receita. Só que chega um ponto que isso não se sustenta
mais, até porque as pessoas se cansam. Diminuir gasto é sempre mais difícil, há
reclamações. No momento da aflição, opta-se por não reduzir custos e por fazer
com que a economia cresça na marra, aliviando a carga fiscal para certos
setores. O que acontece? Dá distorções. Tenta-se segurar a inflação e não
aumentar o preço da gasolina. Aí você mata o etanol e prejudica o outro lado.
Nós vivemos um momento de barata tonta. O Banco Central, nessa hora, aumenta os
juros. Mas, sozinho, ele não segura a inflação. Tem que haver uma combinação
entre o Banco Central e a política fiscal. Conversar com a população ao invés
de se fechar. Não dá para impor e dizer “minha vontade é lei”. Isso aqui virou
Cabo Canaveral, todo dia se lança um programa novo. Tem problema de saúde?
Vamos trazer médicos de Cuba. Eu trouxe médicos e ninguém fala disso. A falta
de médicos é um problema antigo que não se resolve só com isso. Mas errado não
é trazer médicos de Cuba, mas não submetê-los às regras locais, como a análise
do diploma. A forma como isso se fez também causou revolta entre os médicos e
trouxe uma sensação esquisita porque você paga ao governo de Cuba e não aos
médicos. Tem que olhar com atenção porque, no fim, são médicos ligados a um
sistema político. O Brasil tem uma proximidade histórica com Cuba. O último
exemplo foi a visita, em janeiro, da presidente Dilma ao país para a
inauguração do Porto de Mariel, que teve financiamento de US$ 682 milhões por
parte do BNDES.”
“Não sou contra
investimento. Eu mesmo como presidente já gerei investimento da Petrobras para
procurar petróleo lá, como faria em qualquer lugar do mundo. Eu acho também que
o bloqueio de Cuba está errado. O que ocorre, contudo, é que fizeram um
investimento muito grande em um porto novo, sigiloso, com financiamento
basicamente brasileiro. Como disse o Aécio Neves ironizando um pouco, a maior
obra de Dilma foi um porto em Cuba e não no Nordeste. O sigilo não se
justifica. Qual a razão para não se ter acesso à informação? Pode ser que não
tenha nada, mas dá a impressão que tem. Sim, o valor foi alto. E disseram que
se trata do terceiro maior porto da América Latina. Achei um pouco exagerado.
“O próximo mandato, seja
ele de quem for, será difícil. As bombas de retardamento estão postas. Estamos
nesse processo de criação de bolhas de pressão na economia, a exemplo da
inflação, da taxa de juros, da balança comercial e, como consequência, de uma taxa
de crescimento moderada. Quando eu governei, a taxa de crescimento também era
baixa, mas mais alta que da América Latina e do mundo. E hoje é o contrário.
Estamos atrás da América Latina e do mundo.”
“O governo Lula pegou o
ciclo de expansão da economia mundial e o governo Dilma pegou a retração. Eu
peguei a retração também. Difícil é governar na retração. O Lula governou
durante a expansão, foi na onda e não a contrariou. Até porque não precisava. A
Dilma não tem mais esta onda. Por outro lado, talvez, o governo Lula, pelo
menos enquanto o Antonio Palocci foi ministro, tinha uma sensibilidade maior
com as questões reais da economia. Era menos voluntarista que o governo Dilma.
Política é navegação. Não tem que ter ponto de vista rígido, mas se adaptar às
circunstâncias.”
“O problema não foi
criado por mim, mas pela mudança da situação. São duas coisas: a lei de
responsabilidade fiscal é uma lei essencial. Ela evita que os governantes
abusem do crédito e deixem a dívida para o sucessor. Era um problema sério que
o Brasil tinha. A outra coisa é a dívida que os Estados tinham com os
municípios. O que nós fizemos? Essa dívida era enorme. O governo de São Paulo
tomava dinheiro de bancos estaduais e prorrogava o pagamento. No final, o banco
tinha que englobar a dívida para não quebrar o Estado. Nós acabamos com essa
forma de endividamento irresponsável. Como os governos passaram a tomar
dinheiro emprestado em outros bancos, a juros de até 7% ao mês, nós juntamos
tudo disso e demos um juro moderado para a época. Foi um grande benefício.
Agora, como tudo na economia, é preciso fazer ajustes.”
“Eu acho que o erro do
Lula é pensar que ele começou a história do Brasil. Pegue a questão das bolsas,
que foram feitas no meu período, com a oposição do PT, que dizia se tratar de
medidas neoliberais. Nós fizemos bolsa-escola e bolsa-alimentação. E nós já
estávamos agrupando todas tecnicamente, que é uma coisa complicada. Eu tinha
dúvidas se politicamente valia a pena ou não, mas estava fazendo. O Lula juntou
e ampliou, é positivo. Depois usou aquilo politicamente como se fosse uma
propaganda do governo e dele. Uma questão política. Mas o que mais ajudou não
foram as bolsas. Tem estudos sobre isso detalhados.”
“Voltar, nunca mais. Não,
só se eu fosse insensato. Com essa idade não dá mais. Depois eu acho que cada
um tem seu momento da história. Ninguém será salvador da pátria. Uma pátria que
depende de um salvador está mal. A pátria depende de instituições e de vários
líderes e isso nós temos.”
“Outros cargos, não,
nunca quis. Jamais pensei. Eu acho que não precisa. Para você ter um papel
público para o país, não precisa ter cargo, mas ideias, capacidade de expor
suas ideias, participar, dar sua opinião. O Brasil é um país que precisa de
muita gente jovem e com energia, levando adiante os projetos. E tem.”
“Lula para a
Presidência? Se tiver juízo, não. Eu acho que o candidato do PT é a Dilma, mas
não posso falar por ela nem por ele. Mas acho que o Lula tem sabedoria
suficiente para não fazer um passo que pode ser tão discutível no futuro dele.”
“Eu acho que o Estado
ficou muito abstrato no Brasil. Uma pessoa como o Lula, que é comunicador,
supre o vazio do Estado. Ou melhor, a falta de comunicação do Estado. Com a
presidente Dilma, isso já não aconteceu. É preciso ter uma liderança mais
democrática nesse sentido, mais jovem e também mais capacitada a conversar com
a população. Porque não tem solução para alguns problemas e nós sabemos quais
são. Saneamento, por exemplo, é um tremendo problema no Brasil, assim como a
educação. Infraestrutura já é mais fácil, é uma questão de orientação. Não há
mais alternativas. É fazer leilões bem feitos e controlar mais. Tem que
desinfetar o aparelho do Estado do vírus partidário, da militância partidária.”
Como o senhor encara a
era das redes sociais? FHC: “Razoavelmente bem. Estava hoje mesmo vendo
como estava minha página no Facebook e são 320 mil fãs. Eu entro por meio
desses aparelhinhos (aponta para o iPhone). Não sou como peixe na água nadando,
mas eu vou. Tendo uma boia eu chego lá (risos). Uso e-mail, Skype, tablete, todas
essas coisas e Whatsapp.”
“O Clinton é meu amigo
até hoje. Ele me escreveu uma carta semana passada. Ele anda entusiasmado, uma
vez que a Hillary poderá se ser candidata à Presidência dos Estados Unidos.”
‘De forma geral, os
grandes olham positivamente para a recuperação da economia mundial. Há um
sentimento de que o pior já passou e que a transformação dos Estados Unidos é
grande, que a China está começando a se acertar e que a Europa passou pelo
pior. Mas olham com preocupação para os emergentes, a exemplo do Brasil e da
Turquia.”
“Plano para o futuro, no
sentido específico, eu não tenho. Mas tenho expectativas: primeiro que eu
continue gozando de boa saúde. Segundo, que eu tenha tempo para rever meus
registros diários do tempo de presidente. E isso dá um trabalho enorme e precisa
ter persistência para fazer. Não planejo publicar em vida. Vai ficar para
depois que eu morrer, porque falo mal de muitos amigos (risos). Pretendo deixar
pronto para quando alguém quiser publicar. Esse material foi gravado e regravado.
E a minha voz às vezes ficava embrulhada porque eu estava cansado à noite. Fiz
isso quase toda noite durante meus dois mandatos. São umas 20 mil páginas, que
ainda não se encontram em formato de páginas. As gravações? Na nuvem.”
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