Em dezembro de 1979, o
estudante Fernando de Oliveira, de 14 anos, brincava no quintal de sua casa, no
Andaraí, Zona Norte do Rio de Janeiro,
quando viu o carteiro chamar, acenando com uma carta endereçada a ele. Ao abrir
o envelope, o menino deparou com um cartão-postal que dizia: “Fernando, buenos
dias!”. Assinado, “John Lennon”. O rapaz duvidou que o cartão fosse realmente
de autoria de seu ídolo. Dois meses antes, ele mandara uma carta ao endereço do
músico, no edifício Dakota de Nova York,
sem muita esperança de receber resposta. Quando ela chegou, imaginou que um
secretário se dera ao trabalho de responder. Mesmo assim, mandou outra carta,
desejando Feliz Natal a Lennon, acompanhada de um cartão endereçado a ele
mesmo, para poupar o trabalho de quem recebesse a correspondência. A resposta
veio em janeiro de 1980: “Haddy Grimble + Wishy New Ear! John Lennon – 79” . Era um jeito esquisito de
desejar Feliz Natal, com as sílabas trocadas. Ele duvidou de novo e, para
testar o remetente, enviou um cartão pedindo, em seu inglês deficiente, que
Lennon lhe escrevesse algumas palavras. Mas escreveu em inglês “letters”, letras
em vez de “words”, palavras. Em março de 1980, chegou a resposta brincalhona de
Lennon: as 26 letras do alfabeto inglês. Oliveira achou graça e, descrente,
guardou os três cartões-postais e seus envelopes em um saco plástico.
Ele conheceu Lizzie Bravo,
famosa no mundo da beeatlemania por ter sido chamada em 1968, quando era babá e
au pair em Londres, para gravar com a banda os vocais da canção “Across the
universe”, de Lennon. “Lizzie caiu para trás quando viu meus postais”, diz Oliveira.
Ele hoje tem 47 anos, é jornalista, crítico de música e colecionador de
raridades do rock. “Ela confirmou que a letra era mesmo de John. Só então me
dei conta do que tinha na mão.” O amor pelos Beatles juntou Oliveira e Lizzie,
que começaram a namorar. Ainda no início dos anos 1980, o casal soube, por uma
entrevista de Yoko Ono, a viúva de John, que, entre o fim de 1979 e o começo de
1980, Lennon aproveitava um período de descanso para se dedicar unicamente a
três atividades: cuidar do filho Sean, assar pães e responder a cartas dos fãs.
“Devia ter continuado a escrever a ele, mas não acreditei naquilo”, diz
Oliveira. Em 8 de dezembro de 1980, Lennon, aos 40 anos, foi assassinado por
Mark David Chapman, na frente do Dakota, horas depois de ter autografado o LP
que seu assassino carregava na bolsa. Quem conheceu John Lennon diz que ele
costumava reagir a qualquer coisa por meio da escrita. “Era um escritor e um
dese-nhista compulsivo”, afirma o jornalista inglês Hunter Davies, amigo e
biógrafo de Lennon e Yoko desde 1967. “Mas tudo o que escreveu se dispersou nas
mãos de fãs, colecionadores e casas de leilão.” Depois de dois anos de pesquisa
entre leiloeiros, parentes, amigos e admiradores do músico (entre eles Fernando
e Lizzie).
Davies reuniu tudo o que
encontrou da correspondência de Lennon. O resultado é o volume As cartas de
John Lennon, lançado mundialmente semana passada. Uma festa acontece no neste
fim de semana em Londres, com a presença de Yoko Ono, que autorizou e prefaciou
a obra. Lizzie foi convidada. Não comparecerá porque precisa concluir seu álbum
de memórias sobre os Beatles, intitulado Do Rio à Abbey Road, previsto para
sair daqui a dois meses, baseado em seus diários escritos entre os anos 1967 e
1968. Lizzie cedeu a Davies uma foto que tirou de Lennon, com uma dedicatória
(“Obrigado por um ótimo ano, com amor, John Lennon”). Lizzie, hoje com 61 anos,
diz que não houve nada entre eles além de amizade. “Apesar de seguir John como
uma sombra naquele tempo, apenas conversávamos”, afirma. A compilação de Davies
compreende 285 documentos endereçados a familiares, amigos, amores, produtores,
críticos de música e fãs. São cartas, bilhetes, autógrafos e cartões-postais
organizados em ordem cronológica, de 1951 a 1980, divididos em 23 partes. Durante a
pesquisa, Davies enfrentou uma série de dificuldades. “O problema maior foi
decifrar a caligrafia de John”, afirma. “Ele escrevia à mão e à máquina. Fazia
questão de criar textos com brincadeiras ininteligíveis. Até hoje estou
tentando entender algumas de suas cartas e saber a quem ele as enviou.”
O material é heterogêneo e
não altera o que os historiadores já contaram sobre Lennon – inclusive o
próprio Davies, um dos primeiros a ter narrado o percurso dos Beatles numa
biografia da banda publicada em 1968, dois anos antes da separação do grupo.
Mesmo assim, há detalhes desconhecidos da vida privada de Lennon que sua
correspondência ajuda a revelar. “As cartas trazem à luz aspectos interessantes
de John”, diz Davies. “Ele reaparece divertido, abusado, obsceno, furioso, mas
também filosófico e nostálgico. Como sempre gostou de escrever cartas, podemos
reencontrá-lo na infância e passando férias na Escócia. Isso pode surpreender
algumas pessoas.”
John escreve aos 11 anos
sua primeira carta conhecida, endereçada à tia Harriet, que morava na Escócia. Comenta
que está lendo e adorando um livro sobre o Capitão Kidd, que ela lhe mandara de
presente. Lennon trocou cartas com seus familiares até o fim da vida. Cartas
desconhecidas dele para o pai, Freddie Lennon, e para a tia Mimi, que se
encarregou de criá-lo em Liverpool, quando John ficou órfão de mãe e pai o
abandonara. Lennon expressava carinho com as mulheres. Em 1958, no começo do
namoro com Cynthia, ele desenhou uma cena do par amoroso, com a legenda: “Nosso
primeiro Natal”. Os dois ficaram juntos até 1966. No auge das discussões sobre
os destinos da gravadora Apple, em 1969, de que era sócio com os três outros
Beatles, ele se desenhava com Yoko, ambos sentados nus nas nuvens, acima das
pendengas comerciais.
Lennon, mostrava-se combativo
e sarcástico quando escrevia aos amigos e críticos. Em 1961, redigiu um poema
de desabafo ao companheiro de Beatles, o baixista amador Stuart Sutcliffe
(1940-1962), que desistira de participar da banda para viver em Hamburgo com a
namorada. Não me lembro de nada/sem uma tristeza/tão profunda que mal/se torna
percebida por mim/tão profunda que suas lágrimas/fazem-me um espectador/de
minha própria ESTUPIDEZ. Desenhou um autorretrato com cabelo ao estilo Teddy
Boy ao final da carta – que nunca enviou. Sutcliffe morreu em 1962, aos 21
anos. Lennon deu o poema manuscrito de presente a Davies.
Quando os Beatles se
separaram, em 1970, Lennon continuou a mandar postais e cartas aos antigos
amigos. Tinha prazer em insultar e acariciar Paul e a mulher, Linda. Em uma
carta de 1971, tentou convencer Paul que os Beatles não haviam sido tão
importantes quanto ele pensava. Depois de mandar saudações de amor, fez a
ressalva: “Não tenho vergonha dos Beatles – (eu comecei tudo) –, mas de parte
da m... que engolimos para torná-los tão grandes – achei que todos nós
sentíamos isso em graus diferentes – obviamente”.
Durante a reclusão dos cinco anos finais, Lennon mantinha a atividade frenética
de trocar mensagens. Era um falso recluso. Durante seus últimos cinco anos, lia
os romances recém-lançados, livros de viagem, aventura e filosofia. Gostava de
ler todos os jornais e revistas, americanos e ingleses. Estava antenado com
tudo. Naquele tempo, não havia e-mail nem internet.
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